De volta a Twin Peaks : – )

Tive um sonho estranho noite passada. 25 anos depois dos acontecimentos na cidade de Twin Peaks, me vejo de volta acima dos picos gêmeos. A foto da debutante Laura Palmer (Sheryl Lee) surge no topo de uma revigorante cachoeira, ao som da inconfundível trilha sonora de Angelo Badalamenti. Cortinas vermelhas enigmáticas em movimento, piso preto e branco em zigue-zague e letras verdes na tela… Aonde estarão nossos amigos depois desse tempo todo? Aonde David Lynch vai nos levar além de nosso subconsciente?

Humor cartunesco, coordenadas, telefones antigos, cartas de baralho, moedas, risadas frenéticas, cavalos brancos oníricos e tortas de cereja que salvam vidas. A terceira temporada trabalhou com louvor a questão de identidades trocadas. Kyle MacLachlan encarnou a maior parte do tempo não nosso querido Agente Cooper, mas Dougie e sua versão maligna, o doppelganger Mr. C, que surge de camisa de cobra, cabelo crescido e uma expressão facial fria que não lhe era nada típica. Em quartos de motel, cocaína, metralhadora e uma pata de cachorro no porta-malas do carro que dirige pela estrada a noite. Já Dougie trouxe da Black Lodge muita inocência e deslumbramento com o mundo, sem a malícia, o brilho e o equilíbrio do personagem original. Ninguém é mais quem costumava ser. Os que não mudaram de nome estão visivelmente mais velhos, não ocultando as consequências do tempo em seus corpos.

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Longe de ser apenas um gravador, Diane (Laura Dern) foi inicialmente uma figura antipática, para se desdobrar em muito mais. Além de tulpa, não natural Rosa Azul, com um estilo peculiar ela se revelou meia irmã de Janney-E (Naomi Watts), esposa de Dougie. Log Lady, ou Senhora do Toco, agora chamada de Margareth (Catherine E. Coulson, 1943–2015), teve conversas poéticas e derradeiras com Hawk (Michael Horse) pelo celular. A eterna secretária Lucy (Kimmy Robertson) foi da vulnerável crise de choro ao confessar que comeu os coelhinhos de chocolate das evidências ao surpreendente ato heroico final. O doce e desajeitado Andy (Harry Goaz) foi um dos escolhidos a receber as visões projetadas pelo Gigante ??????? (Carel Struycken), que agora se revela como Bombeiro.

Apesar do desfecho feliz de alguns, muitos casais desejados vão ficar apenas na imaginação, como Nadine (Wendy Robie), orgulhosa de suas cortinas silenciosas, e Dr. Amp, com um programa no YouTube misto de subversivo e comercial, que se descobriram perfeitos um para o outro, abrindo espaço para Ed (Everett McGill) e Norma (Peggy Lipton), que selaram de vez o romance velado perante o público modesto do Double R. O jantar romântico de Ben Horne (Richard Beymer) e sua secretária Beverly (Ashley Judd) pode acontecer apenas em nossas mentes. Aliás, como sofreu Benjamin Horne! Seu irmão Jerry (“Não sou seu pé”, David Patrick Kelly) amadureceu apenas fisicamente e Richard (Eamon Farren) se mostra um delinquente sanguinário capaz de sequestrar a própria avó, que cuida de um filho debilitado com um urso-lâmpada bizarro como enfermeiro. Audrey (Sherilyn Fenn) ficou presa em uma espécie de pesadelo, torturou de todas as formas o marido anão Charlie (Clark Middleton) – inclusive propondo um brinde ao misterioso Billy – até que finalmente pôde sair de casa, repetir sua dancinha clássica e acordar assustada do coma.

No FBI, a Agente Tammy (Chrysta Bell), cantora pupila de David Lynch, completa o trio eficiente formado por Albert (Miguel Ferrer, 1955–2017) e Gordon (o próprio Lynch), cuja sala é decorada com três intrigantes quadros: uma bomba atômica (origem do mal?), Franz Kafka (inseto quimera inspirado por Metamorfose?) e a ilustração de um milho (alusão à Garmonbozia?). Major Briggs (Don S. Davis, 1942–2008) ganhou uma importância descomunal, amparada pelo filho Bobby (Dana Ashbrook) – agora um ainda jovial delegado de cabelos brancos – assim como Phillip Jeffries, que outrora David Bowie (1947–2016), se imortalizou em uma chaleira. Xerife Truman (Robert Forster), um substituto tranquilo para o irmão doente, enfrenta um drama pessoal e recebe as condolências do motoqueiro Wally Brando (Michael Cera), filho de Andy e Lucy nascido no mesmo dia que Marlon e que se veste como o astro. A série valoriza seus atores e personagens e garantiu a Dr. Hayward (Warren Frost,1925–2017) uma última aparição via Skype.

Shelly (Mädchen Amick) teve tempo para flertar com o traficante Red (Balthazar Getty, de Estrada Perdida) e beber tequila com as amigas, mas sua preocupação com a filha já ficou evidente na conversa de buteco. Em ecstasy, Becky (Amanda Seyfried), contempla o céu com seus olhos muito verdes, ao lado do problemático Steven (Caleb Landry Jones), drogados após decepção da entrevista com Mike (Gary Hershberger), agora empregador.

Invadimos a privacidade de Sarah Palmer (Grace Zabriskie), ainda que sem jamais presenciar os monstros em sua cozinha, assistindo com ela a lutas de boxe e a programas de animais canibais, rodeada por cigarros, silêncio e muita vodka para esquecer os traumas. Gerard, o homem de um braço só (Al Strobel), foi um guia etéreo para Dougie, sempre repetindo “Este é o futuro ou o passado?”. Mullins (Don Murray), um bondoso chefe, esteve fascinante no pôster de seu passado como pugilista. Carl (“não bata antes das 9h”, Harry Dean Stanton) funcionou como uma espécie de metonímia da bondade.

Os irmãos Mitchum, Rodney e Bradley (James Belushi nos brindando com as melhores caras e bocas desde a Sessão da Tarde) passaram de ameaças a Dougie a seus melhores amigos, sempre acompanhados pelas três parcas donas do destino, Sandie, Mandie e Candie. Caracterizadas com trajes rosa idênticos, são burlescas até nos apelidos.

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Já Renault (Walter Olkewicz) aparece na Roadhouse para mostrar que não mudou nada, continua perverso até a raiz, negociando a pele de meninas como se fossem carne, tanta sujeira que nem uma sequência de dois minutos de vassouradas intensas consegue limpar. Sr. Todd (Patrick Fischler, de Cidade dos Sonhos) e o capacho Roger (Joe Adler) tiveram o desfecho merecido nas mãos da assassina Chantal (Jennifer Jason Leigh), elegante com sapatos Louboutin. Ao lado do parceiro do crime Gary (Tim Roth), ela seria capaz de alvejar até a sombra, se bem alimentada por pacotinhos de Cheetos. Ainda no time da maldade, um clone de Abraham Lincoln pergunta com voz gutural “Got a Light?”, no episódio mais próximo de uma exposição de arte da história da televisão.

A senhora que buzina impaciente no carro e berra “Porque isso está acontecendo?” representa indiretamente telespectadores nervosos com o andamento lento da trama – e para Lynch, quando mais lento mais belo – cheia de digressões. Freddie (Jake Wardle) tornou-se um herói inusitado com sua luva verde… e acaba dando uma lição também no repugnante policial Chad (John Pirruccello). A luta contra a bola de fogo Bob (Frank Silva, 1950–1995) parece uma fase de jogo com chefão, em cena caricata e propositalmente debochada.

Denise (David Duchovny) teve breve ponta para confessar como é bom pronunciar a sigla Federal Bureau of Investigation por extenso e fez Gordon disparar a epígrafe “Consertem seus corações ou morram”, caso não entendam a mudança de gênero de Dennis. Monica Bellucci surgiu como ela mesma em sonho monocromático, perguntando “Quem é o sonhador?”. A modelo e cantora Sky Ferreira teve uma aparição mais do que justa depois da mórbida “Night time, my time, cujo refrão retoma conversas entre Laura e Donna. Irreconhecível bagaceira no bar, se soma às muitas figurantes que nos confundiram em papos sobre pessoas nada familiares – até o co-criador Mark Frost fez um cameo passeando com um cachorro. Mesmo personagens com cenas menores como Darya (Nicole LaLiberte), Sam (Ben Rosenfield), Tracey (Madeline Zima), Buella (Kathleen Deming), Otis (Redford Westwood) e até a mãe drogada (Hailey Gates) que gritava 119 (será um salmo ou um número de emergência asiático?) vão deixar saudade.

As atrações musicais no Bang Bang Bar são mais um chamativo no retorno da série. A visceral apresentação do grupo The Veils superou inclusive os aguardados ‘The’ Nine Inch Nails e Eddie Vedder. A menina tirada de seu lugar por dois marmanjos, engatinhando em meio a uma plateia masculina e gritando a plenos pulmões ao som de “Axolotl” foi uma performance a parte. Cantaram no local  também o “sempre legal” James Hurley (James Marshall) retomando o passado, Rebekah Del Rio – que não passou nem perto da emoção que causou chorando no Club Silencio – e Julee Cruise, fechando com uma chave azul as referências ao universo lynchiano. Mas foi o pianista Smokey Miles o responsável pelo momento musical mais belo, ganhando a atenção de Dougie no Silver Mustang Casino, quando foi reconhecido pela mendiga (Linda Porter) que Mr. Jackpots tornou rica repetindo “Hellooo!” e indicando máquinas premiadas.

O roadmovie (porquê não?) final causa desconforto pela falta de pertencimento em um universo paralelo cheio de figuras que nos são estranhas. Cooper ataca cowboys inconvenientes que poderiam acordá-lo e frita suas pistolas diante de um display de Coca-Cola muito antigo da lanchonete JUDY’s, deixando no ar a pergunta “em que ano estamos?”. Em sonhos surgem detalhes e pistas que podem não levar a lugar nenhum…  tive a sensação, enquanto dormia, de que tinha respostas, mas as perdi. Talvez nunca saberemos o que Laura fala no ouvido de Cooper, mas podemos imaginar inúmeras possibilidades, reunindo as peças deste quebra-cabeças incompleto e exatamente por isso tão infinito e fascinante.

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One thought on “De volta a Twin Peaks : – )

  1. Texto maravilhoso, Stê! E eu já estou com saudades de ter toda semana pelo que esperar tão ansiosamente pra assistir… O que nos conforta é saber que o universo da série é esse infinito mesmo e daí não se esgota com o fim do programa de domingo à noite (ou no meu caso, de segunda à noite hehe). Bjo!

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